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Mostrando postagens de 2011

um soneto

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  Hoje eu quero compor um soneto. Mas não quero quadras. Não quero tercetos. Quero apenas a poesia decomposta em prosa. Mas mesmo assim irei chamar de soneto. Porque o soneto é meu, de ninguém mais. É encontro as escuras, sem espaço à rasuras. É noite fresca, são beijos que se perdem no final. É o véu que cai. O meu véu que cai. E mostra. Despudoradamente me mostra.  

Chuva passageira (ou Prosinha em voz alta)

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  Chuva, chuvinha, chuvona temporal. Cai nesta cidade. Molha esta cidade. Lava esta cidade de coração febril. Chuva de março e do ano inteiro, chuva de outubro, lava meu Rio de Janeiro. Molha meu Rio. Para meu Rio, minha cidade-gafieira.   Chuva, chuvinha, chuvona temporal. Lava o carioca. Molha o carioca. Para o carioca. Para esse povo que sorri sem pensar. Molha esse povo que corre sem parar. Lava esse povo que sofre sem amar... Molha Meier. Para Madureira. Lava Tijuca. Lava, lava tudo, na rua e na favela, na praia e na Portela, lava tudo, para tudo, molha tudo... e se der, aproveita e lava também esta saudade...   Mas por favor, chuva querida, eu te peço: não se demore muito não. Vá embora, sim, quando terminar de lavar. Seja passageira e deixe um sol macio voltar para esta província que não pode parar.  

A velha do capuz

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Por Vitor Bornéo Hoje viu a morte pela primeira vez. Não foi como ver uma pessoa morta. Um corpo. Ou como viver uma situação a qual pensou que não fosse escapar. Isso tudo já tinha experimentado. Aquilo foi diferente. Foi ver a velha do capuz negro, agitando sua foice, ceifando... Rápida. Sem aviso. Inesperada. Foi sua primeira vez. Esperava para atravessar a rua, em um cruzamento. A sua direita, do outro lado, onde de fato estava a faixa de pedrestes, um rapaz também aguardava, com sua mochila vermelha nas costas, o sinal abrir. Foi tudo muito rápido. Se estivesse olhando para outra direção ou mesmo distraído com os próprios pensamentos tudo já teria terminado antes que pudesse virar o rosto. Mas não estava. Não estava olhando para outra direção. Seus pensamentos estavam ali, bem ali. Viu tudo acontecer quadro a quadro: aquele segundo que depois lhe pareceria eterno. Da rua de trás veio um ciclista, pela calçada. Estava distraído, parecia um entregador. Teria sido diferente se não e

Matinal II

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Por Vitor Bornéo Comprimir-me entre os membros de outras pessoas me traz uma sensação estranha. Em alguns momentos me perco no todo, não sei mais o que sou eu e o que é outro. Onde começo ou termino. Levado a posições estranhas, ponho-me a meditar. Quando supero o incomodo, sinto uma espécie de transe suarento. Não deve ser algo muito diferente do que sentem aqueles gurus indianos em seus rituais de mortificação da carne. Às vezes até fecho os olhos, mas sem descuidar do tato, com medo de que a carteira suma durante meu nivana. Tento pensar que daquela lata de sardinha com pouco ar sairei mais puro. Pura ilusão, talvez. Normalmente saio fedendo e dolorido. Nem sempre, porém, minhas viagens são exercícios de contração que desafiam a física espacial. Isso pode ser melhor ou pior, dependendo do ponto de vista. Como um animal moderno, não é todo dia que me encontro disposto a partilhar meu quinhão de solidão com qualquer desconhecido que ocupa o mesmo banco que eu. Em prol da civilização,

Outra vez (trecho)

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  “Os cabelos estavam mudados. O corpo, antes de menina, agora era de uma mulher, com suas curvas e detalhes que despertavam muito mais que a simples atenção.  Mas o olhar, o sorriso... estes ainda estavam ali.  Um semblante simples, meio doce, meio tímido, mas com certa adorável malícia implícita, não havia envelhecido nem um dia nos quase 10 anos que se passaram desde a última vez que estiveram juntos.   Tinha o perfume também... a sensação o pegou de surpresa. Teve certa reminiscência. Nunca imaginaria, semanas antes, que a vida lhe pregaria aquela peça. Mas estava ali. Frente a frente, buscando o que iria dizer depois de tanto tempo.   Arriscou o óbvio.   ‘Você está linda’   Ela corou. Soube então que havia ­– dessa vez – feito a escolha certa.”  

Meia Noite em Paris - crítica

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Por Vitor Bornéo Woody Allen é um daqueles diretores aos quais é impossível ser indiferente. Ou você o ama, ou o odeia. Confesso fazer parte do primeiro grupo, mas reconheço que assim como seu público, sua direção é bipolar: minha teoria é que Allen é completamente incapaz de produzir um filme mediano. Quando erra na mão, dá vontade de dormir. Mas quando acerta... quando acerta é sempre em cheio. Esse é o caso de Meia Noite em Paris ( Midnight in Paris ): Woody Allen em sua melhor forma. Aliás, desde Melinda e Melinda ( Melinda and Melinda , 2005), o diretor vem nos brindando com uma ótima produção atrás da outra – com exceção talvez do fraquinho Scoop: O Grande Furo ( Scoop , 2005). Depois da primeira metade da década de 2000 produzindo filmes que, apesar de bons, estavam bem abaixo do conjunto da sua obra, Allen parece ter entrado em uma fase mais madura – talvez um reflexo do seu “encontro”, por assim dizer, com a Europa –, que eu espero que dure bastante! Que o digam o denso e

Transformers 3: O Lado Oculto da Lua - crítica

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Por Vitor Bornéo. Antes de tudo, tenho dois recados: O primeiro é sobre a função deste veículo pelo qual lhes escrevo: quando venci meus temores e decidi manter um blog, um dos objetivos do Composto Substantivo – além de abrigar uma pequena parte do que eu poderia chamar de, modestamente, minha produção literária – era servir de espaço para resenhas críticas literárias ou cinematográficas, não apenas minhas, mas futuramente, para outros amantes destas artes que estejam interessados em publicar na internet e compartilhar suas opiniões com o público. Depois de muito adiar este início, ontem, após assistir Transformers 3 decidi que era o filme perfeito para inaugurar esta seção do blog . Isto nos leva ao segundo recado: se você é daqueles que vai para o cinema assistir Transformers esperando um filme que vai te fazer repensar sua vida, nem perca seu tempo: certamente não irá gostar do filme e este post não tem nada a acrescentar na sua vida. Ah, e é claro, provavelmente você também é

Conto da Velha Floresta

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  Certa vez vi uma menina entrar na Velha Floresta. Primeiro fiquei confuso. Seus movimentos eram fluidos, seus cabelos se juntavam a noite. Era um vulto branco e sensual se deslocando com leveza entre carvalhos e olmos. Pus-me a segui-la sem pensar. Rápido, adentrei pelos arbustos, tomado de encantamento e desejo. Não pensei de fato. Apenas fui. Senti o negror cobrir meu corpo e, guiado apenas pelas bruxuleantes luzes da mata, continuei, tateando o desconhecido. Meu coração poderia ter saído pela boca ou parado de bater. Nem ao menos teria me importado. Apenas precisava estar ali. Podia sentir sua presença. Sua respiração quase sussurrante. Seu cheiro entre as folhagens... posso jurar que cheguei a sentir seu cheiro. Mas por mais desesperada que fosse minha busca, meus olhos não podiam ver. Por muito tempo – não sei quanto, não importa quanto – fui um fantasma cego naquele mundo estranho. Perdi tanta substância que me juntei com a sombra. Éramos um só. Meu corpo estava em todo lugar

casualidades

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Por Vitor Bornéo Todo o ardor tropical estava escondido naquela manhã. O tempo nublado, cinza, parecia dar outro ar à cidade. À meia luz, tudo ganha uma sobriedade madura, coisa de Velho Mundo. Como ele bem reparou as pessoas também parecem ficar mais bonitas quando o sol se esconde. Da janela, ia vendo os jardins encharcados. Sentia ali uma beleza doída. Queria explicá-la em palavras. Pensou em um ou dois versos. Esqueceu. Começou o Mar e Lua . Emocionou-se um pouco, voltou a pensar nos jardins. Então se deu conta que aquele céu não abriria nunca mais. Já Passou . Mas não passou. Persistiu. O jardim apodrecia com toda aquela umidade, aquele frio tuberculoso. Insalubre. Olhou o relógio, esqueceu a hora. Perdeu o tempo. Passo após passo, todos se enfileiravam para aquela visão da morte. Já tinha até esquecido do princípio quando ouviu. Ouviu, assim, como quem ouve um passarinho, quando já nem lembrava mais o que era ouvir. Ouviu um raio de sol. Um belo raio de sol. Um raio eterno, hipn

Matinal I

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Por Vitor Bornéo Todo dia de manhã transporto uma legião de mudos. Uma legião que parece enfurecida com suas carrancas e expressões de desgosto. Encolho-me no meu assento e toco o carro adiante, esperando um bom dia que nunca vem. Olho o trânsito matinal, o fluxo constante e ininterrupto pelas vias abarrotadas até quase o limite e penso em mim como uma espécie de hemoglobina que faz esta cidade funcionar. Fluir. Rio. Rio em seguida porque percebo que nunca penso em meu próprio sangue a não ser quando ele se esvai ou me falta. Acho que isso é normal. Dou um riso que muitos dos meus compartilham, mas que na maioria fica amargo com o tempo – como aquela piada melancólica de humor negro que já perdeu a graça e constrange ao invés de fazer rir. Amarga até nos fecharmos em nossas próprias carrancas e deixarmos de esperar... Ainda sim, sinto orgulho de mim mesmo. Eu guio a todos como iguais e igualdade é ou não é uma coisa importante? Homens fortes e fracos dos subúrbios. Mulheres direitas da

O começo

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Por Vitor Bornéo Começar é uma arte delicada. Sempre achei o começo muito mais complicado que o fim. Sair do zero absoluto para uma coisa, qualquer coisa é um fenômeno que me intriga. Se o estado natural de tudo é o nada, o ser é exceção. Isso torna o início uma coisa incrível. De repente, o vazio se solidifica em algo tangível. Uma vida, uma idéia, um amor. Um big bang de possibilidades. Alias, falando em vida, ela mesmo para mim é muito mais chocante quando começa do que quando termina. O fim é o fim. Todo mundo espera o fim. Mas e o começo, o princípio? Sair do doce conforto da inexistência para um existir frio e hostil. Assustador. Pensando bem... Talvez essa conversa seja toda bobagem. Talvez o começo já tenha tido um começo. E o próprio vazio seja alguma coisa. E então, tudo já começou em algum momento, alguma outra vez. E então, em outro instante, infinitos começos atrás, alguém viveu assim. Que nem eu, que nem você. E tudo vira parte do todo. Do passado infinito. Do eterno f