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Parla

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, eu pedia. Eram as palavras que amava mais que tudo. Aquele jeitinho de escolher os vocábulos, aquelas frases pausadas, minuciosamente compostas,  tudo para me dar tempo de madurar um significado. Em vão: salvo uma expressão ou outra,  tudo que ela dizia era um grande mistério para mim. E mesmo presos em universos linguísticos diferentes, quando nos conhecemos, foi paixão a primeira vista. Talvez tenha sido o vácuo deixado pelas palavras não compreendidas que nos levou inexoravelmente um até o outro –  ou, quem sabe, aquela musical cadência com a qual ela falava que me atraiu. Verdade seja dita, foi atração feroz. Eu não falava italiano e ela nada entendia do português, nem havia outra língua comum,  dado meu vergonhoso monoglotismo.  Mas bastou escutar – amei desde o primeiro instante aquele falar adventício. Seu nome. Foi seu nome o que ouvi  primeiro. Tinha um "Chi" quase impossível para meu aparelho fonador. Repetia incessantemente apenas para vê-la rir da minha

Por que ainda tenho amigos extremistas?

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Muita gente tem me perguntado por que eu ainda mantenho pessoas extremistas no meu Facebook. Geralmente respondo, não sem algum humor, que faço pelo entretenimento gratuito. Isso não chega a ser uma completa mentira, afinal, dou mesmo algumas boas risadas diárias com o grau de fantasia que algumas postagens atingem. Mas tão pouco é esse o único motivo. Bem verdade, seria mesmo mais justo dizer que faço isso por vários motivos. Talvez o primeiro deles seja porque reconheço a rede social do Zuckerberg como um retrato, ainda que sob lentes distorcidas, da sociedade em que vivemos. Uma lista de amigos diversificada é um apanhado, um exemplo por amostragem, de uma cidade, país, até de um tempo. Seria muito fácil excluir e bloquear todos que pensam diferente de mim do meu perfil. Mas eles continuariam existindo a minha volta. E mais que isso, eu perderia a oportunidade de conhecê-los melhor. Já foi o tempo em que por trás de teorias da conspiração estapafúrdias estava alguém estranh

2016 e os Cavalos de Kafka

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Uma crônica de fim de ano é uma das tarefas mais ingratas que um escritor pode tomar para si. Todo mundo já sabe exatamente o que esperar desse tipo de texto, é algo como o “especial do Roberto Carlos da literatura”. Mas tudo bem, cá estou eu, e alguma coisa precisa ser dita. De cara me vem em mente dois caminhos diferentes para essa crônica. O primeiro,  uma longa lamentação das mazelas do ano que passou. Isso iria render bastante,  admito. Não me entendam mal,  não acho que 2015 tenha sido exatamente pior que os outros anos como um todo. Uma tragédia aqui,  outra ali... Altas tretas em Brasília (e no Facebook ), verdade. Tudo dentro da capacidade normal do ser humano de estragar tudo. Sem ineditismo. Mas para a lamentação sempre há assunto. Poderia fazer uma retrospectiva de acontecimentos gerais para cada  ano de história documentada e com cada uma arrancaria lágrimas. O mesmo vale para o ano individualmente. Eu,  particularmente,  perdi uma mulher,  um emprego,  dois peixes.

Natal

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É véspera de Natal e faz um calor infernal. Estou em casa, ouvindo os barulhos da ceia ficando pronta na cozinha. Já que o ar-condicionado está proibido pela conta de luz, tento aliviar meu calor embaixo do ventilador. Esta manhã li sobre um rapaz que vive há 15 anos no aeroporto internacional de Guarulhos.  Denis. Acho que era esse o nome dele.  Quinze anos vivendo de caridade,  num mundo onde o tempo é marcado por pousos e decolagens. A história de Denis foi uma maneira indigesta de começar o dia. Eles têm ar-condicionado nos aeroportos? Aqui em casa somos poucos. Cristãos, menos ainda. Mas mesmo assim é Natal e a mesa vai ficando cada vez mais cheia até meia-noite. Enquanto isso fico variando de sofá e de ventilador. Sinto um frio da barriga,  uma coisa inexplicável que sinto todo Natal; talvez uma forma de compensar calor infernal que sempre faz. Ou uma lembrança,  uma lembrança de quando eu era moleque e todas as expectativas de dezembro giravam em torno de um embrulho

Doze respostas a quem “precisa do machismo”

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  Hoje é dia 8 de março, dia Internacional da Mulher. Ao longo desta semana tenho lido toda uma gama de absurdos a respeito da data e do feminismo nas redes sociais. Na verdade o presente texto foi escrito originalmente para o Facebook. Escolhi um post que vem sendo compartilhado e sintetiza bem todos esses preconceitos e disparates e resolvi “responder”, item por item, para ajudar meus colegas homens (e incrivelmente, algumas mulheres!) a não passar vergonha compartilhando essas besteiras por aí. O texto do Eduardo Santos (na figura abaixo) que circula no Facebook e motivou esse texto, mostra como é possível dizer muitas mentiras usando apenas verdades: uma colagem de dados bem montada para refletir um ponto de vista machista e misógino.     O que segue então são alguns esclarecimentos e correções ao colega:   1) Os casos de pensões são em geral favoráveis as mulher porque existe uma cultura do homem o provedor e a mulher dona de casa. Se a mulher deixa de trabalhar para

Adeus ano velho, feliz ano velho

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Enquanto caminho minha mente divagava para fugir do calor.  Está acabado. Toda a pungência louca de dezembro culminando em um grande  show  pirotécnico,  beijos e abraços na praia. Mas não estou na praia.   Estou caminhando de volta para casa. Os relógios da Rua Dias da Cruz apontam que 2015 começara já faz uma hora. A hora deve estar certa, mas duvido dos 32 graus que mostra o termômetro. Com o suor grudando minhas roupas no corpo, sinto-me mais em Arrakis que no subúrbio do Rio de Janeiro. Famílias passam por mim com suas expressões de fim de festa,  regressando para seus respectivos lares. Vez ou outra algum fogos de artifício atrasado ainda se faz ouvir, quebrando o silêncio da noite. Sempre odiei fogos de artifício. Barulho e fumaça nunca foram meu ideal de comemoração.   E eles estavam ali... Na calçada,  sob uma marquise. Um casal dormindo entre um amontoado de pertences. Não. Não apenas um casal. Havia também uma terceira criatura. Uma criança que a primeira vista tome

Crônica de Natal

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Essa é, talvez, a mais estranha de todas as épocas do ano para mim. Não sei se é o calor - o calor sempre me incomoda. Ou se porque não sou nem nunca fui cristão. Mas o Natal aqui no Rio de Janeiro sempre me pareceu uma data... Exótica.   Não me entendam mal, eu sempre gostei de Natal. Bem verdade que poderia destilar linhas e mais linhas de críticas. O calor, a enorme quantidade de pessoas nas ruas lotando os shoppings e lojas, estapeando-se pelo melhor preço,  comprando presentes para meio mundo só pela perspectiva de ganhar um par de meias a meia-noite. Um consumismo ilimitado que acaba com uma fatura estourada do cartão de crédito em janeiro. Sem falar que a coisa toda não tem nada haver com a gente! Pinheiros? Neve? Frutas cristalizadas? Alguém realmente gosta daqueles pedaços de caco de vidro colorido que alguma bruxa má um dia misturou na massa do panettone? Já mencionei o calor? Enfim... Eu poderia falar sobre tudo isso.   Mas como disse antes,  eu gosto do Natal. Gosto