Matinal I
Por Vitor Bornéo
Todo dia de manhã transporto uma legião de mudos. Uma legião que parece enfurecida com suas carrancas e expressões de desgosto. Encolho-me no meu assento e toco o carro adiante, esperando um bom dia que nunca vem.
Olho o trânsito matinal, o fluxo constante e ininterrupto pelas vias abarrotadas até quase o limite e penso em mim como uma espécie de hemoglobina que faz esta cidade funcionar. Fluir.
Rio.
Rio em seguida porque percebo que nunca penso em meu próprio sangue a não ser quando ele se esvai ou me falta. Acho que isso é normal. Dou um riso que muitos dos meus compartilham, mas que na maioria fica amargo com o tempo – como aquela piada melancólica de humor negro que já perdeu a graça e constrange ao invés de fazer rir. Amarga até nos fecharmos em nossas próprias carrancas e deixarmos de esperar...
Ainda sim, sinto orgulho de mim mesmo. Eu guio a todos como iguais e igualdade é ou não é uma coisa importante? Homens fortes e fracos dos subúrbios. Mulheres direitas da Tijuca, putas da Lapa ou travestis da Central. Todos estão sujeitos aos mesmos arranques e sacolejos.
No início me dava pena ver tanta gente de bem tratada como gado num curral apertado atrás de mim. A luta por espaço em meio a grunhidos e mugidos me deprimia. Mas isso foi virando passado, ficando tão distante que quase me esqueço.
Além do mais, como um peão do asfalto, preciso tocar o rebanho sob a pena do açoite do capataz. É a sina de todo peão. Não se rebela contra uma sina. Você pode se rebelar contra alguém, mas não contra uma sina. Contra a ordem natural das coisas. Isso é impossível.
E é assim, quando oxigênio vira gado, que aprendo a ser mais eficiente. Aprendo que os velhos atrapalham a boiada, atrasando seu andamento em preciosos minutos com seus passos trôpegos e arrastados. Que os muito jovens tendem a irritante desordem, causando um transtorno em toda a boiada. Descubro então que muitas vezes é melhor deixar os dois tipos para trás em prol de uma comitiva mais eficiente, mais unida.
Vejo que o brado funciona melhor que a doçura. Perco a ternura.
E entendo, finalmente, que gado não fala.
"todo dia acordo com alegria e pena", já me disse um português ...sou da teoria que toda leitura é autobiográfica. tive certeza agora.
ResponderExcluirperder a ternura jamais, companheiro, mas, sim, hay que endurecer...
Lindo texto.
Que bom que gostou, Li. : -) fico lisongeado.
ResponderExcluirprimeiro comment do blog rsrs.. que emoção! Rs
first! adoro inaugurar e descobrir coisas. lisongeada fico eu, descobri um autor! :P
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