Feroz

Lembro que todas as cinzas manhãs fazia aquele caminho. Era uma casa construída sobre rocha, de modo que para chegar até ela, subia-se dois longos lances de escadas rentes ao paredão de pedra crua. Em cima havia um pequeno portão e uma amurada que separava o quintal de uns bons dez metros de queda. O parapeito era sustentado por uma sequência de pequenos pilares brancos, jônicos, que davam ar senhorial a fachada.

 

Foi lá que eu o vi.

 

Da primeira vez, achei que fosse saltar pelo vão da amurada tão disposto para fora estava, desafiando a altura. Não. Ficava ali, parado, olhando o movimento. Como um gárgula no topo de uma torre. Silencioso. Era completamente branco. Olhava tão fixamente para frente que poderia mesmo ser confundido com uma estátua se não estivesse em uma posição tão inusitada. Na manhã seguinte voltei a olhar e lá está ele. Na mesma posição. Parecia nunca ter saído dali. Passei a esperar por aquele trecho da viagem todas as manhãs, só para observar aquele quadro tão exótico. Reparei que movia a cabeça devagar, como se acompanhando discretamente os que passavam na rua.

 

Mas não estava certo. Por algum motivo, angustiava-me. Apesar do tamanho e da dignidade, não conseguia pensar nele como um guardião. Mais que guardar, minha impressão é que velava. Comecei a enxergar uma melancolia naquele seu não movimento. O que tanto olhava? Quantas horas passaria ali? Pendia-se tanto para fora que parecia prestes a alçar voo. Mais não alçava. Nunca alçaria. Então por que continua olhando?

 

Fiquei, por muitas ocasiões, esperando que respondesse meu olhar curioso. Talvez vendo seus olhos pudesse entender. Ignorado, fui esquecendo. Foi se tornando uma parte banal da paisagem até que finalmente notei que não o via mais. Um dia, outro, depois outro, e ele não estava lá. Sumiu e já podia jurar que havia sonhado aquela visão curiosa em minhas manhãs sonolentas quando um dia, fazendo aquele mesmo caminho a pé, em outro horário, vi um senhor, na certa um servente da casa, varrendo a calçada, com o portão aberto. Eu mesmo me surpreendi com a urgência que fui lhe disparando a pergunta:

 

"O que aconteceu com o cachorro que morava aí?"

 

E mesmo assustado com a abrupta interrupção, o bom homem não deixou de responder.

 

"Morreu."

 

Seguiu-se um breve diálogo.

 

"Caiu lá de cima?"

 

"Como o senhor sabe?"

 

"Qual era o nome dele?"

 

"Feroz."

 

"Era bravo, é?"

 

"Não, senhor. Nunca deu um latido sequer."

 

Disse-me isso com tamanha calma e naturalidade... Fiquei em silêncio. Sai andando. Depois sorri.

 

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Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Esse seu texto me deu alegria e pena. Sou muito fraca pra histórias caninas, uma manteiga. Será que é muito ruim se identificar com o personagem principal desse texto?

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  3. Acho que não... eu me identifico com ele. Muito. :-)

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  4. "De certa maneira, foi saudável para mim entender que não podia esperar nada. Por semanas e meses, por anos, na verdade, por toda minha vida eu esperava algo acontecer, algo intrínseco que mudaria minha vida e, naquele momento, de repente, graças à completa desesperança de tudo, senti-me aliviado como se tirassem um grande peso dos meus ombros. (...) Caminhando em direção a Montparnasse, resolvi seguir ao léu, não resistir em nada ao destino, não importa como se me apresentasse. Até então, nada do que tinha acontecido comigo conseguira me destruir nem nada fora destruído, exceto minhas ilusões. Eu estava intacto. O mundo estava intacto". Amanhã podia haver uma revolução, uma epidemia, um terremoto; amanhã podia não sobrar uma só alma na qual alguém pudesse encontrar solidariedade, ajuda, fé. Eu achava que a grande calamidade já se mostrara, eu não podia ser mais verdadeiramente só do que naquele exato momento". (Henry Miller)

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  5. Po, Lili, tá querendo trollar meu blog?! Tu me posta um texto do Henry Miller embaixo do meu cãozinho! Isso é trollar pelo contraste! hauahuahauahu

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  6. esse foi digno do Mestre dos Magos, Lili... rsrsrs

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  7. "O lar é o reflexo do coração" ahaha

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