Thessaloníki (trecho)

 

Alice e Sula

 

Estava caminhando pela cidade quando resolvi entrar em um minimercado, uma mercearia que vendia principalmente frutas e verduras. Fui atraída pelo cheiro forte das azeitonas armazenadas em grandes sacas e tonéis, expostas bem na porta. Tinham cores e tamanhos que só tinha antes visto na tevê. E havia os temperos... Identifiquei os odores de pimenta, canela... Quase fiquei tonta ao sentir o orégano de perto. Outros eram-me completamente desconhecidos. Mas foi pelas olivas que fiquei cativada. Algumas eram tão grandes quanto uma bola de golf e tão negras quanto ébano. Se não fosse pela textura, a textura peculiar, o cheiro forte... Fiquei ali, sentindo aquele cheiro, tímida, apreciando aquelas pessoas pitorescas comprando suas especiarias – minha boca encheu-se d’água nos instantes que estive ali parada. Então senti um toque leve no meu ombro. Virei devagar, sem sair do estado contemplativo em que me encontrava. Levemente arredondado, seu rosto tinha um bronzeado muito suave e era emoldurado por cabelos negros como ébano. Reconheci-a pelos olhos – de um azul cobalto quase artificial. A moça albanesa que conheci na casa de Constantino. Ela fitou-me com um sorriso de reconhecimento, um sorriso tímido em meio aos contornos grossos de seus lábios. Disse alguma coisa sussurrada que quase não escutei. Quando repetiu, percebi que não poderia entendê-la, pois falava em grego. Mesmo assim, senti uma sensação agradável ao ouvi-la. Tinha um tom de interrogação. Foi se aproximando mais enquanto falava até que chegou por atrás de mim. Senti sua respiração na minha nuca. Fazia sinal para as azeitonas. Parecia querer que eu experimentasse. Quando entendi, fiz sinal com a cabeça, negando e sorrindo, tímida. Ela insistiu. Não entendia uma palavra do que dizia, mas percebia seus gestos. Pegou minha mão suavemente. Fiz silêncio, surpresa. O olhar era congelante. Arrepiei-me e, vendo minha própria reação, fiquei constrangida. Mesmo assim ela não se movia. Levou meus dedos até o tonel de olivas... Nossas mãos mergulharam juntas. Meu coração acelerou de um jeito louco. Não consegui entender o que estava acontecendo naquele momento. Como não peguei nenhuma, ela mesma apanhou, rompendo o contado entre nossas mãos ao levá-la a minha boca. Imóvel, mal pude abrir os lábios quando ela os tocou, primeiro, por uns milésimos de segundos, com os dedos e depois com o fruto.  Não sei bem o que aconteceu comigo. Tenho a sensação de que fechei os olhos por um breve espaço de tempo enquanto provava. Só sei que instantes depois lá estávamos nós duas, andando lado a lado pelas ruas de Thessaloníki. Lembrou que Sula tomou-me pelo braço. E foi assim, em silêncio, que caminhamos por vários minutos antes de dizer uma única palavra. Novamente minha noção de tempo estava perdia naquele frio que sentia na barriga. Inspirava e expirava uma confusão pura.  Era uma mudez que me constrangia, mas ao mesmo tempo não conseguia soltá-la e ir embora. Queria ficar. Percebi enquanto andávamos que Sula tinha um perfume peculiar. Algo como o cheiro do campo. Ou como eu imaginava que seria o cheiro do campo. Só que mais doce. Não sei explicar. Quando não pude mais resistir, disse em inglês.

 

“Onde estamos indo?”

 

Ela apenas acenou com a cabeça. Não falava inglês e eu já sabia disso. Acho que havia me esquecido. A comunicação direta entre nós por palavras era completamente impossível. Não entendia uma palavra de grego. Mesmo assim prosseguimos. Tentei fazê-la entender o que queria dizer, falando em inglês mais devagar e gesticulando. Ela começou a rir quando fiz uma tentativa patética de me expressar na língua grega. Corei. Depois, vendo aquele sorriso indulgente, ri junto. Gargalhamos. Por mais de uma hora caminhamos juntas e nossa comunicação consistia principalmente em monossílabas e gestos. Encostávamos com frequência, acho que nos procurávamos para nos entender. Sem perceber procurava seu contato. Era muitas vezes a forma mais fácil de dizer alguma coisa. Um toque. A pele da albanesa era macia, com uma textura viciante. Não lembro de nenhuma outra vez na vida ter notado isso em outra mulher.

 

Paramos em uma praça com vista para o mar. Estava um vento frio e ficamos ali, aproveitando nosso mundo silencioso. Senti como se tivéssemos criado um código secreto de sinais e sensações. Estava deserto, com exceção dos poucos pássaros que também compareceram para apreciar o fim da tarde. Olhava para o mar, mas sentia Sula me observando. Tentei falar alguma coisa.

 

"Por que você veio para cá?"

 

"Ήρθα λόγω της φτώχειας... ohh... Eh... How do you say? Poverty. Poor... I poor. Very.”

 

"Sim, sim, poverty. Entendi. Albania, não é? Stavros disse que você é albanesa."

 

"Ναί, ναί... Yes."

 

"Eu vim atrás de Angélica... Constantino deve ter contado para você. A filha abandonada, etc... Na verdade não sei exatamente o que estou fazendo aqui. Por que me prender por alguém que nunca deu a mínima? Sim, eu sei que você não está entendendo nada do que eu digo... Tudo bem. Talvez seja melhor assim mesmo."

 

Mas ela não parecia se importar. Ficou me olhando, me olhando com um olhar grave, prestando a atenção em tudo que eu falava como se pudesse entender cada palavra do que eu dizia em português.

 

"Eu fico repetindo esse mantra. Como se importasse alguma coisa. Ela já viveu os anos dela. Quanto mais o tempo passa mais vejo isso. Tanta coisa. Ela viveu os melhores anos dela aqui. O melhor dela foi longe de mim. E o meu melhor? Eu achava que vivia meu melhor... Mas agora eu já não sei mais. Achava que vivia o meu melhor, Sula! Eu tinha uma pai, um noivo, eu tinha uma vida simples! Então chega uma maldita carta e me tira tudo! Tudo, Sula! Penso dia e noite em como conseguiu, sabe? Desde que cheguei aqui acho que penso nisso. Como conseguiu se soltar de tudo. De todos. Quando passava um final de semana na casa de praia de amigos sentia saudades de casa. Como alguém consegue ir embora da própria vida? E agora eu estou aqui... E o mais incrível é que eu não sinto saudades! Nenhuma! Não sinto, vontade de voltar para meu pai, para meu noivo... Não sinto saudades da minha vida. Quer dizer, o que será que eu fiz de errado? Por que também não me sinto em casa? Saio nas ruas e pareço uma criança perdida em um parque de diversões. Você já se sentiu assim? Como uma criança perdida em um parque? É uma sensação terrível. Primeiro você sente aquela liberdade e você corre de um lado para o outro. Depois, quando você realmente nota que nenhum rosto conhecido está a sua volta dá um medo. Uma coisa que congela. Você para, olha a sua volta. Todos os seus brinquedos preferidos estão lá, tudo que você mais queria fazer... Mas isso não serve de consolo. Então você fica lá... esperando alguém te achar. Segurando as lágrimas, porque sabe que se chorar, todos vão começar a olhar para você. E você não quer que ninguém saiba que está perdida...”

 

Parei de falar. Ventava forte, meu cabelo caia sobre o rosto. Sula ainda me olhava fixa. Percebi que estava chorando, enxuguei as lágrimas que me escaparam com as costas das mãos. Continuei olhando.

 

"Você deve estar achando que sou louca. Falando sem parar com alguém..."

 

Mas perdi a vontade de continuar, de me explicar. Fiquei só acompanhando aqueles olhos perfurantes. Ela tirou meus cabelos do rosto, colocando-os para atrás da orelha. Estávamos perto. O vento trazia muito frio. Esqueci completamente do que falava, olhando, só olhando para Sula, intrigada... Depois esqueci disso também. A mão em meu rosto. O hálito quente. O cheiro de campo. Um calafrio.

 

"Preciso ir."

 

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