dos livros que não li

Ultimamente tenho olhado minhas prateleiras, abarrotadas e tortas, com uma sensação cada vez mais forte de insignificância. Amo livros ao ponto de possuir inúmeros que nunca abri. Andei fazendo as contas e no final os números são sempre frustrantes. Se vivesse para contemplação e lesse um livro por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, duvido que vivesse o bastante para dar conta de tudo que desperta meu interesse.

 

Pensando bem, até consigo conviver amigavelmente com os que nunca abri. Mas um livro interminado é como aquele caso de amor mal resolvido. Aquele afastamento sem final, sem definição. Que fica ali, figurando, acenando no tempo para você a possibilidades do que poderia ter sido: por mais que o coloque de volta na estante, sempre haverá um marcador, uma prova de sua capitulação.

 

Perseguem-me assim muito mais os livros que nunca li dos que o que nunca escrevi.

 

Houve aqueles que eram tão bons que, na medida em que o monte de páginas não lidas ficava mais fino, minha velocidade de leitura diminuía. Era como se as páginas fossem me sugando o ar, até que chegava o momento que o esforço emocional superava o que podia suportar. Exaurido, via que era chegada a hora de fechar o livro.

 

Também tiveram aqueles que, a despeito da genialidade reconhecida dos seus autores – e talvez justamente por ela –, eu nunca alcancei. Acontece normalmente com clássicos que, suspeito eu, tornam-se clássicos justamente no momento em que as pessoas param de lê-los de coração e começam a lê-los por ordem de alguém.

 

Dos livros ruins nada digo. Poucos foram os terríveis o suficiente para me fazerem desistir antes do fim. Sou perseverante e – não sei se isso é um defeito ou uma qualidade – tenho uma capacidade de enxergar valor como poucos.

 

Tem uma autobiografia, uma das melhores que já tive em mãos. Talvez esse seja o mais curioso dos casos. Lia enquanto esperava uma namorada sair de suas aulas. Eu tinha toda a urgência dos apaixonados e aquelas páginas eram a única forma de fazer aqueles minutos intermináveis terem alguma piedade e serem mais breves. Na vida do poeta, desligava-me. Às vezes, durante a aula, ela escapulia e trocávamos beijos às escondidas no corredor. Ficava esperando ansioso por esses nossos momentos secretos. E quando, finalmente, ouvia o barulho das cadeiras arrastando, todas ao mesmo tempo, sabia que era hora de fechar o livro. Em instantes ela cruzaria a porta e eu, que aguardava ali, sentado no banco, finalmente a receberia. Daríamos as mãos e sairíamos juntos, noite afora…

 

Aqueles momentos tornaram-se tão doces, tão especiais, que passei a guardar as páginas de meu livro apenas para eles. A história do poeta remetia-me a nossa história. Seus amores, viagens, alegrias e tristezas eram um verdadeiro bálsamo para o tempo que teimava em não passar. Na época não entendia que o amor floresce na ausência – ela, a espera, era minha feroz inimiga.

 

Aconteceu que então, aquilo que não passava, passou. Infelizmente o livro foi comprido demais e a história de nossa paixão acabou antes que pudesse chegar ao último capítulo. E agora lá está ele, interminado, na cabeceira. Não sei se um dia o lerei. Embora eu já saiba o final, gosto de ficar imaginando desfechos alternativos para aquela vida.

 

Não faz muito comecei um novo romance. Obra diferente, plácida e bela. Tenho gostado tanto que, a cada linha que avanço, temo por seu esgotamento. Ou pior, por sua incompletude. Mas tenho em meu íntimo, a sensação que encontrei, na verdade, uma leitura inesgotável... que poderia passar o resto dos meus dias folheando estas páginas, infinitas.

 

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Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. "Mas um livro interminado é como aquele caso de amor mal resolvido".
    Quantos casos de amor mal resolvidos eu tenho na minha estante. Eles ficam me encarando e tem dias que me sinto tão oprimida que quando entro no quarto eu passo reto por eles, pra não ouvir nenhuma acusação.



    queria ter parado no meio desse texto e deixar um marca-páginas pra ler depois e não ler nunca e imaginar desfechos mais felizes pra ele. À parte isso, ou melhor, à parte isso não, porque, apesar de triste, como todos os textos tristes, você fez o fim ficar bonito, então, pensando bem, foi bom ter lido até aqui.

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    1. ohh, você é quem é uma leitora muito generosa, Lili! :-) E seu comentário é inspirador, como sempre. Verdade, quase posso ouvir as acusações as vezes... "você nunca chegou ao final".

      O que será o final, afinal? :-)

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  3. Por acaso eu fui a musa inspiradora desse texto? rs
    Me senti retratada na leitura,na maneira perfeita e no dom que vc tem de expressar sejam sentimentos ou fatos.
    Obrigada pela oportunidade de 'te ler' ...
    Beijos de uma fã incondicional.

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    1. Como sempre, gentil demais você, Flávia! :-) Fico lisonjeado com seus elogios e fiel "audiência"! :D

      Que bom que você se identificou com a crônica. Sinal que ele é um pouco seu também. É como diz-se no "Carteiro e o Poeta": um poema não de quem o escreve, e sim de quem precisa dele. Acho que o mesmo vale para todo texto!
      Beijos!

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