Visão de Carnaval

Vamos juntos cortando a multidão, com cuidado para não nos perder. Vou na frente, abro caminho entre foliões bêbados e cansados para ela passar tranquila. Passamos por uma mulher, um Neandertal, um policial, um bombeiro... Todos de mentira, menos o Neandertal. Não choveu, mas a rua está molhada. A Cidade está fedendo a cerveja e a urina fresca. Mesmo assim estão todos sorrindo e eu sorrio também. Sorrio pelo hábito. Um sorriso cheio de tensão, mas um sorriso.

 

Em algum lugar está tocando uma marchinha. Lembro o que estou fazendo aqui. É para lá que vamos. Parece que alguma coisa explodiu. Não me assusto porque ninguém se assusta. Hoje somos todos um só.

 

Com a desculpa de não dos perdermos, estendo minha mão para atrás. Só quero sentir seu toque. Aperto o passo sem soltar sua mão. Ela anda com cuidado para não sujar os pés. Parece deslumbrada e assustada enquanto salta com um jeito de bailarina.

 

Corro uma esquina, duas, três... Para onde nós vamos? Esse calor tá de matar! Vencemos. Um refrigerante, uma lata de cerveja. Estamos ouvindo o bloco, estamos cantando o bloco.

 

Ela canta. A música é velha, mas ela sabe a letra toda, o vai entoando como um hino. Um hino às coisas velhas. A beleza da marchinha é como a dela. Triste.

 

E num segundo que fito seus olhos, sei que ela é demais para o mundo. E a vida não basta como é. Nem são suficientes todos os livros.

 

Ela passa perto e cheiro seus cabelos. Fico surpreso porque ainda estão cheirosos. Eu canto junto, eu pulo junto. Eu só queria dizer tudo bem, eu também vejo isso, eu também sinto isso. Também sou Carnaval. Também estou aqui. Se ficarmos perto eu a protejo como posso. Tenho vontade de puxa-la para mim e beija-la. Mas não faço isso. Seria uma vulgaridade. Fico sem graça. Ela é uma heroína. Eu não sou ninguém.

 

Visão de Carnaval

Imagem de Flávia Kingsbury®

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