na Rua da Praia

Já estava tarde, tinha decido do ônibus e caminhava pela Rua da Praia há algumas quadras quando me deparei com aquela senhora. Antes, o que me chamou atenção foi a lona azul, estendida sobre a calçada de pedras portuguesas, coberta de livros. O hábito me fez diminuir a velocidade das passadas: não resisto facilmente a livros, mas dessa vez, não achei que fosse interromper minha caminhada. Esperava livros espíritas, autoajuda, coisas que normalmente não chamam minha atenção. Mas Ulysses me fez parar. Joyce, em uma bela edição de capa dura vermelha, saltava aos olhos. E não estava só. Proust, Sartre, Barthes... volumes e mais volumes. Abaixei-me, esquadrinhei as edições tentado o máximo possível não bagunçar a ordem criteriosa na qual estavam dispostas. Quando finalmente encontrei algo de meu interesse levantei com a obra em mãos, a procura do responsável pelos exemplares. Então a vi. Sentada no degrau de uma loja já fechada, lançando-me um olhar atento, cheio de interesse. Não sou capaz de dizer quantos anos tinha, mas seus cabelos lhe davam o aspecto de senhora: longos, lisos e desgrenhados, pareciam precocemente brancos. Suas roupas, simples, mas dignas, seus óculos bifocais me lembram uma bibliotecária. Nunca tinha visto uma bibliotecária assim, mas com certeza é assim que deveriam ser. Levantou, perguntou com uma voz baixa, quase sussurrada, se podia ajudar. Mostrei-lhe o exemplar que tinha em mãos. Ela começou a falar dele, dos outros... Tinha uma intimidade. Sabia o que estava vendendo. Sabia bem demais. Não olhava para os livros como produtos, objetos à venda. Era um olhar nostálgico. Eram os livros dela. Quando terminou de falar, perguntou se era só aquele. Disse que sim. Não conseguia olhar nenhum outro. Disse no automático.

Sim, eu disse, vou levar este.

 

Senti como se estivesse lhe roubando, lhe espoliando o conhecimento. E ela continuou ali, passiva, olhando-me com aqueles olhos de professora, olhos compreensivos. Senti uma vertigem. Quis que ela gritasse, gritasse comigo. Chorasse talvez. Mas ela continuou parada, com aquele sorriso de cera. Os olhos saltavam sob os óculos de lentes grossas, velhos, remendados. O que ela estava olhando? O que ela enxergava que eu não via? Entreguei-lhe uma nota de vinte. O livro era dez. Devagar, foi com a mão numa bolsinha pegar meu troco. Fez tudo isso com aquele sorriso, como se eu lhe tivesse fazendo o maior dos favores. Quis falar que não precisava – o livro valia no mínimo uns quinze –, que podia ficar com o troco. Mas não me saíram as palavras. Apenas estiquei a mão e apanhei o dinheiro. Perguntou-me se queria uma sacola. Não me lembro de ter respondido, mas ela pôs mesmo assim. Uma azul, fina. Quis dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Queria dizer que lamentava muito. Queria abraçar a velha e chorar com ela. Chorar por ela. Só disse obrigado. Peguei a sacola a segui a diante. Não tive coragem de olhar para trás. Acho que corri.

 

***

 

O livro foi para minha prateleira. Nunca o li. Acho que nunca o lerei. Quando vejo a lombada me pego pensando nela. Na falsa velha da Rua da Praia. Em suas estantes agora vazias. Sinto frio e não posso deixar de pensar: será que um dia serão as minhas estantes vazias? Estarão, então, eles também dispostos sobre uma lona?

 

pedras portuguesas

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